"Tropeçou e caiu de joelhos. Chorou mais ainda, sentindo o corte que sangrou, manchando as figurinhas estampadas da Hello Kitty em seu pijama. Por que saiu sem as pantufas? Agora seus pézinhos doíam...
- N-nós vamos f-ficar bem, D-Dentinho... - agarrou-se ao pelo do amiguinho de pelúcia. O ursinho sorria um eterno otimismo. " (Dentinho - Georgette Silen)
Comovente não é? No entanto, tem cuidado leitor. Trata-se de um dos contos da Série Extraneus II – Quase inocentes. Creio que não preciso dizer mais.
Extraneus II - Páginas em Chiaroscuro
Continuando a série Impressões e Expressões de Leituras, dessa vez escolhi um livro com um tema que me assusta bastante. Extraneus II – Quase inocentes. A Série Extraneus nasceu marcada pelo inusitado. Em Extraneus I (resenha aqui) o medieval e a ficção cientifica uniram-se de forma muito criativa, resultando em um dos meus favoritos da editora. Pois o segundo volume da série apresenta uma dupla que não é nova, mas que nos enche de assombro: crianças e terror. Esse tema, para mim, está bastante ligado ao cinema. Apesar de várias representações serem baseadas em livros, foi nos filmes que conheci as crianças mais cruéis da arte.
Não sei quanto a vocês leitores, mas essa dupla que me apavora desde sempre: terror e crianças. Desde os filmes dos anos oitenta que passavam durante a tarde até as últimas produções do cinema, sempre aparece alguma novidade no gênero. Não o terror que elas possam sentir perante o desconhecido, perante criaturas que há muito reinam no imaginário infantil traduzidas em formas de lobos, bruxas e monstros diversos. Refiro-me a casos como os dos contos de Extraneus II, onde elas são, simplesmente, (direta ou indiretamente) agentes do medo.
E por que isso nos assombra tanto? Eu por exemplo fiquei dias sem dormir depois do adorável protagonista de Cemitério Maldito. Inquietante não é?
Creio que essa reação vem do fato de que crianças são dependentes, por isso, delicadas. Encantadoras, são vulneráveis e nos tornam vulneráveis perante sua fragilidade. Como essa adorável criança em vestido vermelho que Giulia Mon nos apresenta.
"A menina saltou para o vazio. Uma mancha vermelha, invisível no céu escuro aterrissou sem ruído perto da moça, que se virou, surpresa. A criança sorriu o seu sorriso mais inocente. A moça sorriu de volta. Ela era gentil e as pessoas gentis são amistosas com japonesinhas que parecem bibelôs em lojinhas de souvenir." ( Criança Noturna - Giulia Mon)
Claro que diversas representações artísticas apresentam o tema da infância. A criança já foi o sonho, a vítima, o algoz, a fantasia. A doçura, a meiguice e também a crueldade presente no universo infantil alimentam obras que marcam a história da arte. Mas delas, sempre se espera a inocência. Como este sorriso tão meigo descrito por M.D.Amado.
"Rosana se detém por mais tempo diante de uma menina. Olha o nome na pulseira - Aline - E depois de brincar por alguns segundo, dá-lhe um beijo na sola dos pés, vira-a de costas e sopra-lhe a nuca. Novamente de frente para ela, olha-a diretamente nos olhos, ainda semiabertos, e sorri. A retribuição é imediata. Aquele sorrisinho dos bebês, assim, meio de canto de boca..." ( Corações Negros - M.D.Amado).
Desconstruir esse aspecto da inocência, sem pender para o exagero nem perder o toque de vulnerabilidade que o tema pede foi um trabalho muito bem realizado em Extraneus II e autores selecionados. E o título da coletânea combinou perfeitamente com os contos que apresenta, afinal, elas são apenas... quase inocentes. O livro é composto por 15 contos e durante a leitura, o leitor tem a oportunidade de conhecer algumas criaturas angelicais e seus brinquedos ahn... inusitados. Entre as páginas, transitam vampiros, múmias, harpias, animais sobrenaturais, deuses, sacerdotes, lobisomens, piratas e serial killers.
Como espaço narrativo, os personagens desfilam por mansões assombradas, casebres, catacumbas, lares insuspeitos, ruas escuras, cidades modernas, hospitais, florestas, poços fétidos e vilas, entre outros. E, por fim, os personagens têm seus caminhos marcados por pactos, sonhos, maldições, traições, violência física ou psicológica, guerra, vingança, a mais pura essência da maldade ou missões de origens divinas, como a que o pequeno Sêtherekh recebe.
"Então, naquela noite, Sêtherekh sonha com o deus. Ele se insinua sem ruído na câmara, agacha-se ao seu lado na esteira e o desperta sussurrando em seu ouvido. Seu hálito é quente, um pouco fétido; ele segura a cabeça do garoto, prendendo-a com as garras para que não perca uma só palavra. São novas ordens, compreende Sêtherekh." ( Os servos de Thoth - Ana Lúcia Merege)
Nessa coletânea, não há nenhum conto que eu não tenha gostado, cada um traz algo de especial e a variação de temas, espaço e personagens foi bem legal. Mesmo temas considerados clichês são abordados de forma bem criativa.
Brinquedos macabros que exercem seu fascínio ou ainda, crianças marcadas pelo sobrenatural que apóiam-se nestes objetos fantásticos e sombrios também são temas explorados em mais de um conto no livro, como no quase doce e ao mesmo tempo, sangrento Dentinho, de Georgette Silen.
Declaradamente uma homenagem a Anne Rice, o conto Criança Noturna, de Giulia Mon apresenta o mito do vampiro na sua concepção mais perigosa, representado pela mais pura inocência. Esse conto me agradou muito, tem poesia, solidão e ferocidade.
M. D. Amado, em Corações Negros, apresenta um conto sombrio onde o macabro não é exatamente uma escolha. De mãos e faces inocentes, crianças são marcadas por pactos dos quais não podem escapar. Gostei da forma da narrativa escolhida pelo autor. As cenas vão se apresentando quase em fragmentos, mas de forma bem coerente até o desfecho.
No conto Vestido cor-de-rosa, de Camila Fernandes o foco não está no sobrenatural, a violência é o mote que estilhaça toda a inocência que o título em rosa prometia. Joelma consegue cativar o leitor em poucas linhas e quando a violência se instaura, é de forma implícita. Uma narrativa contundente que angustia pelo que tem de realidade. Ótimo conto.
A Revelação Kyngá, de André Bozzetto Jr. remonta a lendas de tribos perdidas nos confins da floresta. A procura, por parte de pais desesperados, por uma sabedoria milenar com poder de cura tem conseqüências inimagináveis. Para quem conhece o autor, não tão inimaginável assim. Conto bem construído e uma boa leitura.
Guardian Angel, de Luciana Fátima foi um conto que me surpreendeu, numa mescla de piedade e também de horror, claro. A presença de um anjo, com todos os elementos que os estereótipos pedem, como os cachinhos dourados, por exemplo, escondem uma realidade bem mais cruel.
Crianças, vizinhos misteriosos e presentes instigantes. Em O Presente de Berenice, de Adriano Siqueira, o mistério e a aventura estão a um passo dos inocentes protagonistas. Achei esse conto divertido, principalmente o desfecho.
Um relato surpreendente de um pirata assombrado pelo passado. Em Loucos, Ossos, Passos de Sopros, de Lucas Rezc, a superstição de outrora, na qual unir mulheres e navios era sinônimo de azar é retomada e com esse sentimento a tripulação do Tempestade Noturna recebe a pequena Clarice. Mas logo, ela não estará mais só. E os piratas agora precisam conviver com duas garotas e fatos que vão bem além da superstição. Elaine e sua presença misteriosa é apenas o começo de uma série de acontecimentos inusitados. Título bem sacado que fez todo sentido no final.
Em O Grande Estopim para a Vida Criminosa de Alice Carmesim, de Luísa Vianna, o cinema e a vida imitando a arte, ou a arte imitando a vida sao o cenário para uma descoberta inquietante. Neste conto, a força de uma cena marcada por vermelho rubi torna-se uma revelação na vida de Alice, a pequena filha de uma estrela de cinema que escolhe seu próprio e sangrento caminho. Diferente e bem interessante este conto.
Ah, o amor, por ele, ou em nome dele tudo, tudo pode acontecer. No universo das descobertas, o conto Brincadeiras de Crianças, de Juliano Sasseron, apresenta-nos Adriano, um personagem comovente, melancólico e cujo destino será para sempre marcado pela força de um sentimento que guarda com intensidade dentro de si. Amor de criança? Talvez. Mas com todos os sentimentos que traz com ele, como a solidão, o ciúme, o desespero e a fatalidade. Achei esse conto comovente, e o final tem uma poeticidade incrível.
Em Os Servos de Thoth, de Ana Lúcia Merege, um universo distante é palco da luta de um pequeno servo para cumprir sua missão, e nesse caminho, não há espaço para ouvir a piedade ou o medo. Alguns momentos são quase surreais, e o cenário é muito bem construído pela autora. Entre reinos decadentes, injustiças e corrupção, o mote é a fé e, talvez, o receio de um poder superior que não pode ser negado. E apesar das dúvidas e do medo, essa é a motivação para Sêtherekh seguir até o fim na sua missão.
Em O Poço das Harpias, de Celly Monteiro, elementos como a crueldade, o amor, traição, o desespero da sobrevivência e criaturas indescritíveis são a tônica dessa narrativa. Ler o conto possibilita experimentar sentimentos como piedade, asco, assombro e confesso, sabor de vingança. Um conto muito bom.
A crueldade infantil poucas vezes foi tão friamente representada quanto pelo trio que protagoniza o conto Reversões, de Andrés Carreiro Fumega, a narrativa conseguiu inovar por meio de elementos diferenciados, além de um cenário muito bem construído e um desfecho surpreendente. Ah, e um gato fascinante.
Crianças e Guerra formam uma combinação das mais injustas e o tema é retomado em Duas Crianças, Duas Chaves, de Felipe Pierantoni. Quando o poder da decisão e a força das armas passam a ser guiadas por mãos e corações ainda presos à infância, tudo pode acontecer. Conto triste e ainda que o final seja de certa forma, esperado, nos surpreende ainda assim.
E por fim, o conto Caindo no Despertar, de Suzy M. Hekamiah apresenta ao leitor um cenário frio e silencioso, repleto de impressões sombrias e lembranças trágicas. Neste local, o garoto Oliver vive um universo onírico, onde sonhos, pesadelos e lembranças se confundem até que finalmente, a realidade se revela.
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Uma curiosidade. Enquanto procurava algumas imagens para o post, conheci a adorável Rhoda Penmark, protagonista do filme The Bad Seed. Segundo o que li por estes sítios virtuais, ela foi a primeira criança má do cinema. Parece que pelo filme ter como principal vilã uma criança, causou muita polêmica. Vou ver se consigo assistir e depois comento.
Ah, as imagens utilizadas no texto não se relacionam aos contos, e sim foram aleatoriamente escolhidas por mim entre filmes sobre o gênero.
4 comentários:
Excelente resenha! Parabéns!
Adorei. Como você, crianças associadas ao terror me causam muito medo. O menino de Cemitério Maldito, me deixou tremendo com uma única frase; mamãe é minha favorita (brrr). Gostei muito da resenha, Tânia. Um verdadeiro passeio pelo livro. Obrigada.
Valeu André, parabéns pelo conto, gostei bastante.
Nikelen, eu acho que esse menino do Cemitério Maldito assustou muita gente né, ainda hoje lembro quantos dias fiquei impressionada com ele. Ah, e aquela cena do sapatinho na estrada, muito bem feita.
Obrigada pela resenha, que soube explorar as particularidades de cada conto e, tenho certeza, deixar quem ainda não leu com vontade de fazê-lo! :)
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