Duplo Fantasia Heroica
O Encontro Fortuito de Gerard van Oost e Oludara, de Christopher Kastensmidt
A Travessia, de Roberto de Sousa Causo
Resenha de Tânia Souza
O livro Duplo Fantasia Heroica foi publicado pelo selo Asas do Vento, da Devir e traz duas narrativas repletas de aventura, folclore e magia.
A primeira noveleta, O Encontro Fortuito de Gerard van Oost e Oludara, de Christopher Kastensmidt apresenta uma dupla que promete muitas aventuras nos cenários e paisagens nacionais: o holandês Gerard Van Oost, - que sonha em desbravar o Brasil Colônia e tornar-se um herói ao enfrentar suas criaturas mágicas - e Oludara, um guerreiro ioruba trazido como escravo a estas terras brasileiras. Um corajoso herói em sua terra, destinado a muitas outras aventuras.
Salvador, Brasil Colônia. Em meio ao frenesi de cores e aromas, o leitor se vê mergulhando em um cenário de outras épocas. Observando as expedições que narravam façanhas inusitadas, encontra-se Gerard. Após ser recusado pelos principais chefes das bandeiras, percebe a cada instante que a possibilidade de realizar seu sonho está se afastando. No entanto, no encontro com Oludara, surge a oportunidade de mudar essa realidade. A primeira aventura é a conquista da liberdade de Oludara e, para tanto, contam com a “colaboração” de uma das mais controversas criaturas do nosso folclore, o Saci-Pererê e todas as suas traquinagens. Mas essa não é a única criatura mágica da narrativa, o Boitatá também marca presença. Entre os momentos que mais gostei, destaca-se a narrativa de Oludara, que nos remete a distante África, ao contar a luta com uma criatura mítica e quase indestrutível. Outro fator interessante é a descrição de elementos culturais que vão sendo retratados sob a ótica dos personagens, alimentos, adornos, sabores que, mesmo em uma narrativa curta, garantem a contextualização do espaço.
Oludara e Gerard são personagens cativantes e parece-me, enfrentarão não apenas seres fantásticos, mas também maquinações de outros personagens tão humanos quanto eles, como o bandeirante Antonio Dias Caldas. A narrativa retoma o gênero Espada e Feitiçaria no ambiente do Brasil colonial e tem, nos seres do folclore brasileiro, um diferencial. Esta aventura apresenta a dupla, como se conheceram e desperta a curiosidade do leitor pelas outras narrativas da série A Bandeira do Elefante e da Arara.
Perguntei ao autor sobre a próxima aventura da inusitada dupla e, afinal, o que o leitor pode encontrar em "The Parlous Battle of Gerard and Oludara against the Capelobo" que, a princípio, recebeu a tradução de A Perniciosa Batalha de Gerard e Oludara contra o Capelobo. Christopher Kastensmidt contou que “nesta segunda noveleta os nossos aventureiros descobrem que não estão tão bem preparados quanto acharam para enfrentar a selva brasileira e vão em busca de ajuda. Um dos personagens do primeiro livro aparece, junto com vários novos.” Quanto as aventuras e lutas, a sabedoria continuará sendo uma arma, porém o leitor pode esperar "mais ação nesta segunda história do que na primeira, mas Gerard e Oludara ainda têm que usar a cabeça para escapar de algumas encrencas. E como diz o título, os dois vão ter que enfrentar o Capelobo numa batalha nada fácil."
A Travessia, segunda narrativa do livro, é uma novela de Roberto de Sousa Causo e retoma a saga que teve inicio em A Sombra dos Homens - A Saga de Tajarê. Trata-se da jornada dos protagonistas com o objetivo de voltar para casa após as aventuras que foram narradas anteriormente. Ainda assim, o leitor que não leu o primeiro livro não terá dificuldades em entender a sequência de eventos. Após a destruição da aldeia das amazonas para resgatar Sjala, a belíssima sacerdotisa viking e mãe de seu filho, Tajarê precisa enfrentar poderes desconhecidos que suas ações, mesmo que indiretamente, despertaram.
Neste cenário de um Brasil pré-colombiano, em meio a mata selvagem, árvores gigantescas, aves coloridas e tribos diversas, criaturas mágicas vagam livremente, cientes do seu poder, enquanto um herói escolhido pelas forças mágicas da própria terra precisa cumprir sua saga. Eis Tajarê, um índio cuja força impressiona e que se vê marcado pela sina de ser um herói. Criaturas que há muito dormiam estão de volta, e esse despertar se estende a forças que poucos entendem. Os seres fantásticos se põem em movimento e podem influenciar o destino de todos.
Para realizar a travessia pelo Grande Rio, a força de Tajarê e a magia de Sjala serão testadas e muitas surpresas os aguardam. Os personagens trazem em si a essência dessa paisagem, sensuais, exuberantes e repletos de magia. Além das tribos que encontram, as criaturas mágicas que vivem na floresta são presenças constantes. Mapinguaris. Icamiabas, as mulheres-sem-homem. Caapora, o povo de feitura mágica. Mboitatá. Mati-Taperê. E... E estes são alguns dos seres fantásticos que povoam essa terra perdida no tempo e surgem na narrativa, sempre de forma diferenciada. Em alguns momentos, trazem o medo, o susto, em aparições sombrias e perigosas. Em outros, de forma melancólica, marcados por uma magia além da compreensão, revelando o poder mágico da própria natureza. São simplesmente naturais no ambiente selvagem, místico e de natureza exuberante em que a narrativa se dá.
O trabalho lingüístico que o autor apresenta me agradou muito. A narrativa se apresenta em focos alternados, Tajarê e Sjala contam-nos, sob o seu olhar, os eventos narrados. Na voz de Tajarê, diferenciada e bastante poética, a língua vem carregada de imagens, sons e cores quando o mundo mágico se revela ao olhar do herói que utiliza as palavras para compor paisagens e cenas que observa. Como a “olhar pra Sjala agora Tajarê olhou e viu a mulher feiticeira de outra terra fazer outra feitura mágica com as mãos de dedos compridos”, a sua “mulher-esposa de cabelos-de-ouro (...). De longe, Tajarê podia ver a Sol de igual afundando lenta nas águas agora vermelhosas barrentas do Grande Rio.” E isso sem risco de cansar o leitor, pois sob o olhar de Sjala, a narrativa retoma um tom próximo tradicional.
Sjala é uma personagem fascinante e, na minha leitura, destacou-se bem mais que Tajarê. Não apenas pela beleza e sensualidade, elemento clássico do gênero - assim como a força sobrenatural de Tajarê - nem pela magia que carrega, mas principalmente, como a cada ação, mágica ou não, destacam-se suas tentativas em compreender esse universo ainda desconhecido em que está, as forças mágicas que o povoam e como ela poderia nele se encontrar. Também no seu olhar para Tajarê, admirado, melancólico, surpreso ou fascinado, acaba revelando-o ao leitor de modo muito interessante e, ao mesmo tempo, expondo, questionando e reafirmando os sentimentos que a envolvem, percebe-se o excelente trabalho narrativo do autor.
Prepare-se para vislumbrar continentes misteriosos, criaturas cuja magia parecem equilibrar o próprio universo e uma aventura repleta e ação e sentimentos. E também, para a curiosidade pela sequência narrativa.
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Ah, além das minhas impressões de leitura, preciso dizer que achei muito bacana o selo Asas do Vento: livros de aventura, fantasia, horror e ficção cientifica em formato bolso e capa semi-rigida. E com um fator interessante, autores nacionais e estrangeiros na mesma publicação, como no Duplo Cyberpunk, que inaugurou a coleção. Eu gosto do formato bolso pela praticidade. Além de ser ideal para publicação de histórias mais curtas que oferecem bons momentos de leitura a um preço bem simpático.
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