Livraria Limítrofe – O Adeus
Alfer Medeiros
Resenha de Tânia Souza
“Os olhos não vêem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas”
(CALVINO, Ítalo, As Cidades Invisíveis)
(CALVINO, Ítalo, As Cidades Invisíveis)
Livraria Limítrofe é diversão garantida. Inovador em vários aspectos, pra mim, desde o processo de leitura, pois comecei a ler antes de ter o livro em mãos: o anúncio da publicação, a proposta, os capítulos extras, a tradicional degustação, o manual do livreiro limítrofe, a interessante não-capa... Acompanhar as diferentes etapas e ir saboreando aos poucos foi a minha primeira leitura. A segunda teve início quando o livro chegou, eu já sabia que não tinha capa, mas mesmo assim, fiquei surpresa ao constatar que realmente, não havia capa. A cinta protetora e o reforço na primeira e na última página garantem a estabilidade do livro. Eu já tenho um livro sem capa, mas este veio numa caixa, as folhas soltas e enlaçadas por uma fita de cetim, e ele vai muito bem obrigada, ainda mais que não tenho muitos pudores em arrastar os livros por ai. Creio que a sobrevivência de Livraria Limítrofe está garantida, mas confesso, tenho certo receio em emprestá-lo. A diagramação é linda, cheia de detalhes e a ausência da capa não implica em falta de qualidade, pelo contrario, deixou ainda mais bonito.
Mas o melhor mesmo de Livraria Limítrofe está no que contêm as páginas macias. Uma livraria onde os personagens favoritos, ou não (!) de cada leitor podem criar vida é fascinante. Acho que provoca justamente o leitor em cada um e destaca a importância da leitura. Ler é um processo tão amplo, que o texto só tem forma definitiva na interação autor-texto-leitor. Livraria Limítrofe instiga esse sonho de tocar, falar, interagir e por que não, construir juntamente com o autor os seus universos literários favoritos.
Os personagens nos são apresentados de forma breve, alguns, tornando-se mais marcantes que outros: o divertido e de certa forma, curioso livreiro limítrofe; a esposa do livreiro; um polvo que... bem, isso o leitor pode descobrir sozinho; o misterioso interlocutor, candidato a ser o novo livreiro; os leitores e os não-leitores. E claro, autores. Sim, alguns deles também são personagens, assim como criaturas e outros seres inomináveis que tomam forma nas páginas tal como, anteriormente, fizeram em outras páginas, povoando a imaginação de várias gerações.
Os capítulos, que podem ser lidos sem linearidade, dividem-se entre as explicações sobre o funcionamento da Livraria Limítrofe, os objetos mágicos que ela oferece e entrevistas diversas, nas quais, muitas histórias vão sendo contadas, sempre em primeira pessoa. Tudo isso, em torno da busca de um novo livreiro. E cá entre nós, duvido que o leitor não sinta uma vontade irresistível de ser este sortudo. Eu senti.
Já fiz uma postagem especial sobre o Manual do Libreiro Limítrophe aqui no blogue, e ele também está disponível no site oficial do livro. ( que eu recomendo uma visita bem detalhada). De forma geral, o manual é um antigo pergaminho, escrito numa variante linguística descrita como um tipo de “galaico-português dos tempos em que a língua ainda era uma terra-de-ninguém sem regras bem definidas” e basicamente, descreve as ferramentas mágicas presentes na Livraria. O autor escreveu este trecho utilizando realmente uma forma de linguagem diferenciada, diferente da utilizada nos contos, nesse trecho, ela é floreada e arcaica, e com certeza, me deixou sonhando com artephatos mágicos, tais como o Pergamiño Imphinito, o Balcão-Base, a Gaita Doirada, o Apito de Vidro, a Luneta Rastreadora, o Marcador Memorial, a Ampulleta de Tempo Imutábel e a Caixa Registro-Calculadora.
Sobre os contos, dessa vez, preferi não falar de cada um ou escolher os meus favoritos, e não são poucos, inclusive um que é meu sonho de consumo. Apenas vou dizer que cada um apresenta personagens com diferentes vivências pessoais e literárias. Visitar a Livraria Limítrofe não é escolha do leitor, é a livraria que o escolhe. Mas isso não é imutável e ali, nem todos são leitores, apesar do presente que seria visitar uma livraria como esta, alguns não sabem aproveitá-la ou ainda, seguir as regras. Como o foco está nos personagens, o que cada conto nos oferece são sensações que brincam com nossos sonhos, ou ainda, nossos medos, tristezas, revelando momentos de melancolia, de alegria, de superação e esperança. Encontrei muitos personagens queridos, outros que não conhecia, uns que me assustam e alguns que me lembraram pessoas queridas que já não estão aqui. Finalmente, devo dizer que fechei a última página (afinal, não tem capa) com um sorriso. E esse sorriso era uma mescla de vários sentimentos.
A maior parte das ações se desenrolam no espaço da livraria, como este não é um espaço comum, muitos universos e cenários de desenvolvem nas tramas. É fácil esquecer que ainda “estamos” em uma livraria.
Além de muitas situações que podem ser verdadeiras lições de vida e ao mesmo tempo, momentos de diversão pura, assim como criticas sociais e divertidas ironias, o melhor do livro são as relações intertextuais. E essa é uma das minhas paixões no universo da leitura e da escrita, os caminhos hipertextuais pedem um leitor disposto a mergulhar na interação que as páginas podem oferecer; um leitor que é também um co-autor. Em Livraria Limítrofe, esse espaço sem margens ou fronteiras vai além das páginas do livro, de um conto a outro, de um personagem a outro, as possibilidades são infindas. Alfer Medeiros apresenta cenários, tons, cores, sons, personagens, trajes, e até mesmo uma simples bebida como peças importantes na construção de pontes e pistas literárias instigantes.
Uma coisa que estava me deixando curiosa era saber, no caso do leitor não estar preparado para o labirinto hipertextual dos contos, se a leitura perderia o sentido. Afinal, as referências intertextuais da obra são implícitas, e cabe ao leitor buscar sua história de leitura para completar as lacunas; pois vivi essa experiência em alguns contos e o autor escreveu narrativas autônomas, que independente das referências, permitem ao leitor construir um sentido, curtir a leitura conforme sua identificação (ou não) e gosto pessoal. Mas para leitores curiosos, Livraria Limítrofe pode ser desafiante, com as suas entrelinhas e labirintos literários, tece um universo bem mais amplo do que as suas 190 páginas e diferentes expressões artísticas e gêneros literários (do clássico mitológico aos últimos sucessos literários) que oferece.
Por fim, acho que o que me mais me fez gostar de Livraria Limítrofe foi a percepção de que não é somente o leitor fictício que realiza uma viagem literária.Também o leitor real, eu e você, por exemplo, realizamos esta viagem quando vamos reconhecendo nas páginas do livro as nossas leituras, mesmo as que não realizamos, e reconstruímos momentos importantes das nossas histórias, histórias de vida e de leituras.
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