14 de jan. de 2011

Do fascínio das sombras


 
  Do fascínio das sombras

Por Tânia Souza
 
Observe a imagem acima com atenção.  O que as cores e tons sugerem? De que forma o contraste, o jogo de claro escuro entre a menina e o restante do cenário sugerem e provocam emoções em quem observa a imagem? São tantos detalhes que poderiam ser notados e a cada vez,  a cada interpretação, surgiriam dados novos.  Melancolia, sombras, solidão, são tantas as possibilidades.

Assim é a ambientação e a criação do cenário nos textos literários, podem integrar-se ao perfil dos personagens na construção do sentido de forma muito interessante,  principalmente no estabelecimento da sugestão, recurso útil nos textos do gênero terror. No caso dos textos contemporâneos, quando já não se apresentam tantos mistérios, em relação a locais desconhecidos, salvo o fundo do mar, as cavernas e o espaço, discute-se: será que o cotidiano oferece de fato cenários adequados ao terror? Qual a importância do cenário na construção de um texto sombrio? Onde situar o conto ou o romance?

O espaço da narrativa de terror, tradicionalmente, passa por lugares ermos, escuros, solitários ou que já tenham sido palcos de tragédias. Um argumento comum, por exemplo, em textos que trazem como  tema as casas mal-assombradas, costuma ser a ideia de que toda tragédia vivenciada nestes (ou sob estes) locais, impregna-se de tal forma que a construção incorporou estes sentimentos e capacidades outrora humanos. Maldição, possessão, encarnação. As casas choram, sangram, se movem, sufocam.

Não havia nem sombra de móveis. Paredes nuas e feias lareiras de grelhas vazias fixavam seu olhar sobre eles. Tudo – podiam senti-lo – reagia àquela intrusão, tudo parecia espiá-los com olhos hostis. As suas costas, havia sempre algo a espreita, pronto a lançar-se sobre eles na primeira ocasião. Todo o espaço interno do edifício parecia ter-se coagulado em uma presença maligna que os aconselhava a desistir da empresa…  (Algernon Blackwood – A casa vazia)


Em alguns casos, cenários e personagens confundem-se em um só, como se também a própria natureza ou arquitetura ganhassem vida e poderes sobrenaturais. O terror pode estar presente nestes espaços considerados clássicos, e para alguns, clichês, (os adoráveis clichês), tais como mansões góticas, florestas, pântanos, lagos, penhascos. Essa comunhão entre o estado de espírito de personagem sugestiona o leitor, não se sabe se o fantástico está no olhar do personagem ou realmente no cenário em si.

“ao primeiro olhar que lancei ao edifício, uma sensação de insuportável angústia invadiu o meu espírito. Olhei para a cena que se abria diante de mim – para a casa simples e para a simples paisagem do domínio para as paredes frias – para as janelas paradas como olhos vidrados – para algumas moitas de juncos – e para uns troncos alvacentos de árvores mortas – com uma enorme depressão mental que só posso comparar, com alguma propriedade, com os momentos que se sucedem ao despertar de um fumador de ópio – com o momento amargo de retorno à rotina – com o terrível cair do véu.” (A Queda da Casa de Usher – Edgar Alan Poe)

Ao leitor, instaurou-se a suspeita, independente do que veja na casa, a sugestão foi realizada. O mais importante na contextualização é a verossimilhança. Não é preciso que o cenário em si seja sombrio e assustador, é possível ambientar o terror em ilhas, centros urbanos, prédios, quartos, elevadores, bares, hospitais, ruas, laboratórios, hospícios, no submundo, entre outros. Insisto na questão da atmosfera para o estabelecimento do terror.

A literatura tem força para refletir sentimentos humanos, para inquietar a imaginação. A humanidade construiu-se e constrói-se em meio a guerras, disputas e tragédias.  O ser humano vive cercado não só por belezas e gestos heróicos, mas por injustiças, fome, solidão, violência.  É a crueldade deste mundo sombrio que a arte não nos deixa esquecer, pois em toda a sua trajetória, o feio, o grotesco, o marginal e assombroso teve representação. Essa visão da arte revela algo sombrio e terrível que persiste, ainda que oculto, no coração do homem. E da revelação deste oculto, vem o fascínio pelos personagens sombrios.

Apertou minha mão com uma força que me fez pestanejar, para o que também contribuiu o fato de sua mão ser fria como gelo — mais parecendo a mão de um morto que a de um vivo.(…)
— Sou Drácula — respondeu ele, com uma mesura cortês. — E desejo-lhe boas-vindas à minha casa, Sr. Harker. ( Drácula )

E o seu toque gélido nunca mais deixaria a imaginação das mentes apaixonadas pelo fantástico sombrio. Eles podem ser feios. Mais do que feios, alguns repugnantes. Outros, vão além, carregam em si a maldade, a crueldade. A representação viva dos pesadelos. Feios, maus, agressivos, hediondos, malditos. Mas também comoventes, perseguidos, incompreendidos, fascinantes. São os personagens da literatura fantástica transitando por locais marcantes,  desvendando o desconhecido, concretizando o espanto perante o inusitado da realidade e da fantasia que marca o ser humano.  Fascinando e assombrando.

O quarto do Conde estava vazio. Desci a escada em caracol que conduzia ao corredor subterrâneo e, de lá, cheguei à capela. O caixão continuava em seu lugar, mas, dessa vez, a tampa estava descida. Levantei-a, com cuidado, pois estava disposto, de qualquer modo, a revistar os bolsos do Conde.  O que vi me encheu de horror. Era o Conde mesmo, mas como se tivesse remoçado. Os cabelos e bigodes brancos tinham se tornado grisalhos, a pele mais clara e a boca ainda mais vermelha que sempre, nos lábios gotas de sangue fresco, que escorriam pelo queixo e pescoço. Toquei-o com enorme repulsa, mas era preciso. (Drácula, Bram Stoker )

Declaradamente más ou disfarçada em inocência, as sombras trazem em si o que tem de pior, o engano, a traição, o inesperado. Este traço é bastante explorado tanto na literatura quanto no cinema do gênero. Personagens podem ser grotescos, mas também, a suprema beleza em forma de armadilha. Em relação à composição dos personagens, o feio e o belo alternam-se: já não é mais requisito que o feio em cada um seja aparente, o disforme e o diferente podem trazer consigo o belo; e o sedutor, aquele que tem em si a perfeição, tê-la apenas como máscara aos mais sombrios instintos.

Este personagem pode ser o pai de família que enlouquece, vizinhos que em sua aparente normalidade escondem algum segredo, pessoas comuns que por alguma razão, perderam-se na insanidade, assassinos, psicopatas. O terror psicológico utiliza muito estes recursos.  A instabilidade dos personagens pode estar intimamente ligada a composição das cores, da temperatura,  dos aromas e da própria arquitetura do cenário.

Qual o objetivo afinal do texto de terror? Assustar? Será que de fato alguém, ao ler um texto de terror “leva sustos”? O terror é inquietante, é tensão, é quase insuportável, é uma necessidade de ver e ao mesmo tempo, vivenciar a descrença, a dúvida. O texto fantástico precisa da ambigüidade, da dúvida, e o cenário pode ser um aliado ou mesmo personagem nessa construção da narrativa.

Essa inquietação gera medo, uma sensação que desperta reações físicas e mentais. Porém, quando esta ameaça é “fingida”, tem-se a tranquilidade para sentir sem o risco da realidade. É essa inquietação que os autores buscam e no estabelecimento desses sentimentos, os cenários e personagens se transformam, surgem e desaparecem de forma surpreendente. Na indiferença que parece reger a sociedade contemporânea, a solidão já não é essencial para o estabelecimento do terror.  O cenário pode ser a própria personificação e origem do terror, ou apenas palco para desafiar a sanidade do leitor.

“Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazados por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.  — É sinistro!” ( As formigas – Lygia Fagundes Telles)

O gênero fantástico não é uma obra realista,  mas pode trazer com exatidão o sentimento de um sentimento real, assim, se a função catártica da literatura é o sentimento de alivio, de expurgar a angústia das situações de tensão, deve divertir principalmente. A leitura do texto fantástico permite que a arte da palavra dê maior liberdade à mente, a imaginação pode ilustrar quaisquer sentimentos, tais como o amor, a amizade, a paixão e, claro, o medo. A construção do cenário não é aleatória, explorar estes locais sugerindo o sombrio, no entanto, sem exagerar nos adjetivos, e deixando liberdade para a imaginação parece ser um desafio para o escritor do gênero terror na LitFan contemporânea.

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