24 de ago. de 2011

Impressões e Expressões de Leitura: Cira e o Velho, de Walter Tierno – Segunda e última parte



Bienvenidos os que estão se aventurando em minhas Impressões e Expressões de Leitura. Estou de volta com Cira e o Velho, de Walter Tierno. Ah, não queria, mas sou obrigada a avisar, para quem considera trechos do livro como spoiler, aqui temos alguns. Mas evitei ao máximo contar além do explícito. Para ler a primeira parte, clique Aqui.

Antes, cousinhas importantes.  Estou usando este espaço para algumas leituras que me cativam, independente de serem ou não impecáveis, é justamente o aspecto que mais me agradar que será destacado: o fascínio da imersão literária.

O segundo aviso é algo que devo assumir: desisto de ser organizada. A série era para acompanhar a leitura, mas terminei há tempos, isso em partes não é culpa minha e sim do autor, a história me prendeu e tive que ler tudo de uma vez e não consegui escrever junto. Andei carregando o livro na bolsa, e quando acabou, que pena. Mas as impressões foram precisamente anotadas num bloquinho de notas do qual não me separo.

Cira e o Velho é um dos livros mais legais que tive a oportunidade de ler este ano. Já havia comentando antes e reforço, a linguagem límpida e econômica do autor, mesmo em trechos com maior trabalho de descrição, dá agilidade sem perder o foco nos detalhes importantes. Ser preciso sem ser raso é muito bom. Ah, ainda quanto ao aspecto físico do livro, além da capa belíssima, é ilustrado com traços que podem ir do sombrio à leveza. Aliás, são muito bonitos os desenhos que Walter faz nas dedicatórias dos livros, o meu é este aqui na lateral.

Quanto a trama em si, como indica a sinopse, muitas batalhas terão lugar nesta aventura, assim como traições, enigmas e eventos surpreendentes. Ao leitor caberá a delicia de descobri-los. Homens de além-amar, guerreiros dos Palmares e criaturas do folclore nacional sob um prisma inovador permeiam estas páginas.  O mito está presente, mas nem sempre como o leitor espera. E não apenas alguns, vários deles. Destes eventos e aspectos aventurescos, não farei maiores comentários. Por hora, contento-me em estar com estes personagens tão cativantes, transitando entre os caminhos ainda não desbravados de uma terra nova, cheia de possibilidades e disputas, até o frenesi contemporâneo dos grandes centros.

Então, é hora de começar. Mas... 

“Mas por onde começar?”
“Por onde, então? Por Norato ou pelos pais de Norato e Maria Caninana? Talvez pela mãe de Cira?
Ah, sim... por que não? Comecemos por um lugar comum: todo grande herói, ou heroína, precisa de um vilão, ou vilã, a altura.
Comecemos pelo Paulista.”

Boa escolha, caríssima figura narrativa. Gosto da idéia de começar pelo Paulista. Mas também gosto de subverter a ordem.

Começo por... você.

Que nos cativa e surpreende. O foco narrativo do romance alterna-se em primeira e terceira pessoa de forma muito interessante. Entretanto, com suas viagens e pesquisas, com sua obsessão por Cira, quem nos conduz pela trama narrativa? Além de diferentes fontes e mais 50 horas de gravação e cinco cadernos de anotações, não exatamente transcritos, é sempre por suas palavras que adentramos no fascinante universo de Cira e o Velho. E sua figura se concretiza com carinho para mim, devido ao passeio que oferece.

E a seu convite, também eu “quero falar sobre Cira”.

Esta Cira dos olhos negros e vividos tem em si resquícios de sereias no falar.

“Ouvir o riso de Cira era andar nos domínios da loucura e da luxuria” (p. 109)

A personagem me lembra uma tempestade: é afoita, é valente e ao mesmo tempo, carente, tem uma certa meiguice que se torna impossível não gostar e torcer por ela. De fato, a filha da bruxa Guaracy e de Cobra Norato não é uma garota comum. O que esperar de uma moça vestida em couro escamado e vermelho escuro, cabelos negros que se movem ainda que o vento esteja ausente e que carrega nos ombros um crânio que... que... (bem, deixo ao leitor o prazer da descoberta). Bom senso? Nada, é guiada pela paixão e pelo impulso.  Humana. Ou quase.
É Cira. 

Entretanto, foi marcada pela violência e sua meta principal é a vingança. Aliás, a vingança é um dos motes da narrativa. De uma forma ou de outra, está sempre presente. Mas entre as paixões que permeiam o romance, a ganância é, com certeza, a mais cruel.

Cira tem tanta alegria quanto ódio e sede vingança.  E no seu caminho, surge uma figura que, além de essencial a ela em vários  momentos, encanta não só a Norato e a Cira, encanta principalmente o leitor. Estou falando de Nhá.

“Meu... meu nomi. Ié Nhá, sim sinhora.”

Nhá. Dela, devo dizer que é uma querida. Sim, eu a adorei. Com sua simplicidade e sabedoria, quase imagino os olhos arregalados de espanto, ou não, conforme o que a vida lhe apresentava. Nhá nos aparece quase assustadora. Ancestral. E o era, de fato. Mas transita de criança a mulher, de menina a velha sábia com uma velocidade surpreendente, mas bem coerente. E seus olhos contam da vida vivida além do comum. Olhos de quem aceita o inusitado e a magia com naturalidade.

Na sua busca por vingança, Cira, na maior parte do tempo acompanhada por Nhá, irá perseguir este que nos foi apresentando no principio: o Paulista. Domingos, O Velho, como era chamado pelos capitães. Pai, como foi chamado pelos índios.  Este que era apenas “o mais eficaz e eficiente caçador de gente.” Acompanhado por um exército composto por índios e mamelucos armados, e ocasionalmente, por outros capitães, era temido e odiado. A descrição do personagem feita por Walter Tierno não poderia ter sido mais precisa, nos apresenta visualmente, ainda que com palavras, essa figura tão complexa cujo sorriso poderia ser mais terrível que a ferocidade natural de um rosto marcado. Afinal... “Tudo em seu rosto era assustador. Quando sorria – o que era raro – provocava aqueles arrepios que sobem pelas costas em morrem num espasmo no alto da cabeça.” O Velho era um guerreiro guiado pela ambição, sem espaço em si para sentimentos além da luxuria, do ódio e da sede de sangue. E seu caminho será marcado pelo desejo de vingança que ferve no coração de Cira. Gostaria de falar mais do Paulista, mas seria spoiler demais, apenas dele devo comentar a força, a esperteza e o inusitado. Ah, e claro, a extrema crueldade.

“Domingos fechou a boca, que ficara escancarada durante o linchamento de que participara, e engoliu saliva grossa, misturada com o sangue de alguma das crianças.”

Mas que distração a minha. Falei de Cira. De Nhá. Do Velho. No entanto, dois irmãos, duas criaturas fascinantes do nosso folclore merecem atenção especial: Cobra Norato e Maria Canina.

Ah, um adendo sobre Cobra Norato e Maria Canina. Eu só fui conhecer essas duas figuras do nosso folclore quando adulta, mas enquanto lia a cena do nascimento dos dois, lembrei-me de uma das lendas de minha infância. Versão regional, vejam bem. Aqui, no interior de Mato Grosso do Sul, ( e em alguns outros cantos desse Brasil) contam sobre uma cobra que gosta de tomar o lugar da criança que está sendo amamentada. Diz o povo, é a cobra caninana. A cobra que rouba o leite da criança, coloca o seu rabo na boca do neném e aproveita para mamar a vontade nos seios da mamãe adormecida. Pavoroso não é? Isso assustava muito as pessoas nas regiões rurais. E de quebra, nos assustavam contando isso. Mas voltando aos irmãos, foi exatamente a cena do seu nascimento me levou de volta a estas lembranças folclóricas.

Cobra Norato é vermelho como a paixão que inspira. Maria Caninana é branquíssima, assim como Cira. Enquanto um é alegre e apaixonante, a mágoa, a crueldade e o desejo de vingança (sim, mais uma vez, ela corroendo os destinos) marca a vida de Maria Caninana. Acho que já da pra imaginar, mesmo para quem não conheça a lenda, que os dois são criaturas serpenticas com um raro dom: metamorfosear-se em humanos. Sedutores, fascinantes e capazes de magias indescritíveis. Repletos de paixões tão presentes nos seres comuns. E fraquezas que nem sempre conhecem.

Além deles, outros personagens desfilam nas teias narrativas. O Caraíba, primeiro intermediário entre Caninana e O Velho. Guaracy, a linda bruxa mãe de Cira, que fascina até mesmo o inconstante Norato, parente de sereias e conhecedora de feitiços cujos preços são altíssimos. O Senhor das Mentiras, que manipula e joga para sempre conseguir o que deseja. Tabatinga, guerreiro e valente, um dos outros filhos de Norato.  As sete noivas, tão perdidas de suas individualidades que assim são chamadas, e que ainda assim, me comoveram e surpreenderam. A Morte, que surge como uma apaixonante e birrenta menina.

Criaturas místicas e folclóricas. Sereias, lobisomens, mboitatás, guardiões das matas, princesas, cidades perdidas e tesouros inimagináveis. Árvores tão antigas que se movem e falam aos que ainda sabem ouvir. Os fascinantes reis dos animais: o Rei Tatu, o Rei dos Tamanduás, o Rei-urubu e o Rei-gavião.

O que eles vivenciam juntos? Somente lendo para descobrir. 

Um outro aspecto que chamou bastante minha atenção é a musicalidade presente no texto. Explico: o texto apresenta trechos quase sinestésicos e passagens poéticas 'pra mais de lindas', como esta: “Do rio, saiu uma linda mulher, feita de carne e música.” O sinestésico vem mesmo a misturas de sensações, cores, sabores e principalmente sons. A magia das criaturas intensifica e age nos sentidos humanos de uma forma muito interessante.
“Ouvir a música do urubu-rei era como tomar um vinho muito quente em um dia muito frio e senti-lo aquecer todo o corpo, despertando uma energia estranha abaixo do umbigo. Nhá a sentiu. A sensação veio de sua barriga, subiu pelo seu peito, espalhou-se pelos braços, formigou nas pontas dos dedos... veio-lhe uma vontade danada de chorar. Não de tristeza, nem de alegria, mas de êxtase (...) não demorou que seu êxtase se transformasse em puro medo.”

Cira e o Velho é um romance que desmistifica o aspecto lúdico que tomou conta do folclore nacional. Reinventa os mitos.  É sombrio, repleto de batalhas e cenas violentas em vários aspectos. É também de histórias de pessoas, plenas de paixões e atos inconsequentes, como deve mesmo ser.  E neste caso, também o são as criaturas mágicas. Porém, não é apenas de sombras que esta história é feita, uma saga divertida, emocionante e bastante surpreendente. 

“As forças das lendas, dizem, está em quem as espalha”

Pois mais uma lenda me ganhou definitivamente, confesso, adoraria ler mais sobre Cira e os personagens maravilhosos que estas páginas me proporcionaram conhecer.
Para saber mais, leia as resenhas do Skoob Aqui.
 
Visite o site do autor Aqui.

6 comentários:

Rogério Silvério de Farias disse...

eita! rss

Rogério Silvério de Farias disse...

pus os links do cumpadre Walter lá no meu site, na seção LINKS, Fui!!!!!!!!!!
www.rogsildefar.yolasite.com

Unknown disse...

Li o livro a pouco tempo e fiquei ainda mais fascinada depois de ler tudo isso. Uma ótima diferente que só dá vontade de ler o livro de novo.

Tânia Souza disse...

Oi Roger, cumpadre Walter escreve muito bem, virei fã.

Angélica, eu também li duas vezes, hehe, logo que comecei e depois, retomei, muito bom mesmo, obrigada pela presença.

Walter Tierno disse...

Não ofenderei sua inteligência com falsa modéstia. É um grande desafio ser autor em terras brasileiras. Muito mais nos temas que escolhi para "Cira e o Velho". Fiquei emocionado por ver que você realmente LEU o livro. Que valeram os anos de lapidação do texto. Seus elogios são como uma brisa que refresca essa luta que, por tantas vezes, senti-me tentado a abandonar. Muito obrigado.

Tânia Souza disse...

Olá Walter, realmente, é um livro que prendeu minha atenção, e eu é que agradeço por você ter escrito. Como eu sempre digo, a leitora em mim agradece. Esperamos, eu e outros leitores, por mais livros como este. ^^

Seguidores

 

© 2009À LitFan | by TNB